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Publicações Poéticas

Contos, crônicas e poesias dos acadêmicos 

04/04/24

Um amigo perguntou, cortesmente, como eu estava. Senti uma vontade enorme de desabafar... Mas, como ele poderia pensar que eu estivesse demente, Vacilei um pouco e assumi o risco. Não me contive e me pus a falar: Meu papagaio me aporrinha se queixando de dor de dente O galo do vizinho que me acordava de madrugada, Agora canta desafinado como uma galinha d’angola Disputando sinfonia com o Sabiá da mangueira. Até a perereca que vivia coaxando quando chovia E fazia banquete com grilos, mariposas e muriçocas, Está do tamanho dum sapo boi com a ração dos cães da dona Sônia. Pior é o gato safado da Marta que, não caça mais rato ou barata. Depois que ralhei com ele, vira e mexe o doido mija no meu sapato. E, no meio da madrugada, o bandido saltita de propósito Na frente do sensor de alarme da garagem pra que ele dispare Só pra me acordar e, quando olho pela câmera, ele está lá balançando o rabo, Parece a Anita no carnaval de Olinda. Não, não tô bem. Como poderia estar se tudo parece fora do lugar? Fora isso, só o Diazepam que parei de tomar.

11/04/24

Não te levarei A terra prometida Nem serei A tua última ferida Existir é um momento Certeza de vida E sentimento. Não prometo chegar Com as mãos cheias Nem ser rota eterna Do teu navegar Não te darei luas novas E nem cheias Somente tenho O poema a te ofertar

18/04/24

Hoje louvarei um nobre, mas devo apressar-me, qual livro, também o homem seu próprio destino tem. Vejo ainda ser possível, nos dedos, calcular quantas vezes o vi. Contudo - sem destoar - ali é sempre como a primeira vez: sisudo! Aliás, para um Marquês, esse seria um bom adjetivo de sua fidalguia (é como o vejo): uma pessoa de mérito próprio, distante de seu já fosco tempo, malgrado esse também seja um bom pretexto de, à socapa, rejeitar um livro pela capa: tem vez, a pior máscara adeja o melhor sorriso, mas que, oculto, ver é privilégio para poucos. Essa é a maneira, à force, que o meio grupal impõe e, a reboque, banal inconveniente dá-se que, mais tarde, colada à face, espalhar-se o atributo é fácil, quando se tem têmpera e perfil intitulado. E foi no tumulto das deliberações estratégicas do então recém Estado que, régia, foram prestados seus atributos óbvios e, ficar no anonimato, foi incômodo para alguém, de um tempo já esquecido, em que nenhum senso mede o quão tudo era complicado, a partir das curvas da menina morena - Macapá - que lá ainda não chegara à balzaquiana. Porém, qualquer infortúnio sana a vida bucólica e aprazível de fruir um estilo que, crível, hoje é benesse para prósperos. Ali, feito irmãos, eram inúmeros! E a vida correu feito riacho a desembocar nos afluentes... Vieram os rebentos e, aqui, acho, foi o período mais feliz de mente, corpo e espírito, tanto mais quanto nada era absoluto, inclusive, amplo, para tirar a paz que sentia entre ofício, lazer e família. E nesse passo, chegou o ano de 1988. Ah!, foi bom aquele ido! Ano afoito... que nunca foi embora, de verdade. Como perene realidade, eterno, ficaria gravado, marca do mais doloroso encargo, onde tantos só enxergam louros: junto a outros eminentes e bardos, resgataria e refundaria a Academia Amapaense de Letras, que esquecida jazia. Raízes fincadas, firmemente, ali foi vital, sob o esqueleto de uma catedral por florescer, torcer por improvável pretexto em que o vento, sem esmorecer, a apatia cultural levasse. Três décadas para atravessar! Esse o tempo para maturar, até que outro fôlego se desse. Ah, mundo cruel! Antes que o fogo do ideal brilhasse, do oriente saiu o cavalo amarelo. Logo, intuo que, pela sua mente, nem em seus piores pesadelos imaginou que, avizinhada a hora, algo o embaraçaria - em má hora! - de passar a insígnia. E foi esse o gelo que mais o obstou: ah!, mal mais cruciante não há! Ergueu o melhor e, num entrave, tudo caiu quando, num relance, um iceberg fendeu sua nave (dúbio, mas real) e os pergaminhos, a que, arauto, teve que roer o osso, portando-os à flor d’água - inopino! -, boiaram com as tábuas dos destroços da nau no mais profundo das águas do inalterável... e quedou perplexo a meio da luz, quando os reflexos do sol, de encontro aos vitrais da nave, já abriam os primeiros acordes. É, foi preciso descer o vale; torcer até que o perigo cale, ainda que do pesar nunca acorde. O que me impeliu ao tributo? Silencio! Que cada um seu exame faça no terreno devoluto de seu coração; e verá: seu nome já troça dos tempos sem memória. Sim, homens falham, porém não tece via dupla a consciência histórica, cedo ou tarde, o Nobre: Remanesce

25/04/24

Ela desmoronou nosso castelo, (Que foi erguido com ardor e amor). Agora tudo no chão, Acho que não resta nem o amor, Nem ardor, Só a dor. Mas, certeza, Vai se recompor, (Desta vez só com o amor), Eu e o amor!

02/05/24

Divinha foi estudar fora. Só vinha à Macapá, nas férias escolares e ficava pançudinha com as guloseimas que sua mãe preparava. Era açaí no almoço e jantar. Mas, de tanto viver no sudeste, acabou por se acostumar por lá. Se formou, arranjou emprego, comprou casa e tudo o mais. Depois de algum tempo, pegou o telefone e comunicou à família que estava de casamento marcado. —Uhhh, minha filha, mas tu vem morar pra cá? —Não, minha mãe. Vou morar por aqui mesmo. Mas não se preocupe que, nas férias, vou continuar indo à Macapá. Afinal, não esqueço as raízes: um bom açaí com farinha baguda, acompanhado de camarão, peixe seco ou jabá, ninguém esquece. —fez uma pequena pausa e arrematou: —Agora, deixa eu falar com o papai. A mãe, então, chama o Raimundo e lhe passa o telefone. —Alô!!!??? —Oi, papai, é a Divinha. Tô lhe convidando pro meu casamento e não aceito desculpa nenhuma pro senhor não vir conhecer o Presleyson e ficar pro nosso enlace. O senhor já está aposentado e pode vir. —Uhhh, minha filha... que bom! Quando vai ser? —É em maio, o mês das noivas. Dá bem pro senhor e a mamãe se arrumarem e virem pra cá. —Tá bom, minha filha. A gente vai, num é Maria? —um balanço de cabeça confirmou tudo. —Então, papai, posso lhe pedir um favor? —Qualquer coisa, minha filha! Sinto muito orgulho de você. —Olha, como presente de casamento, só a presença de vocês já vai ser maravilhosa. —Que que é isso, Divinha. Me sinto no dever de comparecer e ver a tua felicidade, que também é nossa. —Que bom, papai! Sim, continuando... peço que, quando o senhor vier, me traga 10 litros de açaí do grosso e 20 kilos de farinha do Pacuí. É que o Preleyson, meu noivo, quer ser apresentado à essa iguaria macapaense. Não esqueça: São 10 litros de açaí do grosso e 20 kilos de farinha. Nisso, Divinha ouve o som característico do telefone já desligado! Mesmo assim, ainda insiste: —Alô, alô! Papai, o senhor ouviu bem? Fecham-se as cortinas!!!

09/05/24

Estranha essa estrada Que todos trilham lado a lado Mas a estrada de uns É uma passarela Na qual o mundo é uma tela Enquanto que a tua Parece a face da lua Cheia de tropeços Que eu desconheço Nela fantasmas espreitam Numa noite escura sem fim Na de outros, flores enfeitam Em canteiros de jasmim Com isso ninguém consegue ver Os monstros que estás a conceber Toda hora, a cada momento Tornando diuturno teu tormento E quem sou eu pra te ajudar? Se um mundo melhor não posso te dar Podias não ser tão doce, Podias não ser tão frágil Podias fechar os olhos Para tanta coisa ruim Mas então não serias mais tu E eu não te amaria tanto

16/05/24

A boca da noite espreitava Nossos ais Profundos e ternos A lua, cúmplice, Escondeu a cara Mostrando inteiro Seu lado oculto A escuridão espraiava volúpia E balançava, frenética, Para cima, para baixo Ao sabor da canção De grilos e cururus De corujas e muriçocas Nossos corpos, bandeiras desfraldadas, Tremulavam em conluio Ao mastro erguido Ao teu e ao meu Contentamento. Dentro de nós O amor vaga-lumes.

23/05/24

"O velho da latas" - Fernando Canto - Cadeira nº4

Aquelas barbas espessas no rosto do homem, brancas, brancas, se esvoaçavam com o vento da Beira-rio. Eram barbas longas que chamavam a atenção de qualquer um, mas que logo, logo, provocavam uma sensação de desprezo pela figura. As pessoas nas mesas ao meu redor comentavam sobre ela e após constatarem que era um mendigo se desinteressavam. Que era um velho o dono das barbas parecia óbvio. Jamais vira aquela pessoa na praça e creio que ninguém a conhecia também. Era um ser estranho. Não fossem as barbas longas diria que era um ancião indígena há muito tempo expulso da vida selvagem e degradado na cidade. Talvez tivesse vindo lá do sul do Pará ou do Maranhão, onde se vê tanto índio mendigando, bêbados, pelas rodoviárias. Acompanhei seus gestos. De vez em quando ele apanhava uma lata de alumínio do chão, ajeitava-a e pisava nela com força, até achatá-la. Depois a punha num saco que carregava às costas e ia e vinha embalando seu cansaço. Calculei que ele se aproximara dos quiosques no finzinho da tarde quando os frequentadores dos bares surgiam para suas confabulações habituais. Certa hora ele se aproximou de uma mesa onde estava um casal bebendo cervejas em lata. Muitas delas já haviam sido consumidas e, amontoadas, tomavam a forma de pirâmide. Ele chegou devagar e pediu as latas vazias com os olhos. O rapaz o encarou e jogou uma lata no chão. O velho abaixou-se para pegá-la, mas o rapaz o empurrou sobre umas cadeiras de plástico, rindo de um jeito antipático e covarde. A moça que acompanhava o valentão repreendeu-lhe nervosamente, pagou a conta e foi embora na frente. Tentei ajudar o velho a se levantar, mas ele se desvencilhou de mim, atravessou a pista e sumiu. A lua minguante surgiu como um imenso olho de cachorro dentro de uma nuvem negra e a maré subia, subia, arrebentando o muro de arrimo, o último anteparo de uma enchente ameaçadora. O vento intenso parecia orquestrar o bailado das águas, vigoroso e circular, provocando frio. Eu não duvidei que naquele momento e naquele pedacinho da cidade a natureza estava conspirando contra mim. Havia muitas luzes em toda parte, e eu estava ali ensimesmado, viajando em desilusões e lembranças amargas, esperando um tempo novo para mim. Sentia-me como uma roupa lavada e posta para secar no varal em dias de inesperados chuviscos. De repente tomei um susto ao erguer os olhos. O velho surgiu na minha frente me encarando como se eu lhe devesse alguma coisa. Tinha o olhar severo e desafiador. Intrigado, pedi que sentasse e resolvi lhe encarar do mesmo jeito. Seu semblante foi mudando devagar até que sorriu. Então pude ver que seus dentes eram de uma brancura inquietante, mas ele tentava mesmo era falar com os olhos, numa comunicação inusitada que surpreendentemente eu compreendia. E foi “falando, falando em silêncio”. Pelos seus olhos dizia dos fenômenos das marés e dos ventos como um mestre em Geografia; falou do céu e das constelações como um velho astrônomo egípcio; dos homens como um santo e do coração como um deus que abre todas as portas para o amor. Enquanto “falava”, percebi que manuseava uma lata de alumínio com movimentos suaves, assim como quem modela uma peça de argila. E após tantas viagens imaginadas, que quase fizeram esquecer minha tristeza, o estranho homem se despediu e foi caminhando com sua sabedoria em direção à fortaleza de Macapá. Ficou em mim uma momentânea sensação de felicidade e a boca seca de vento e vinho. Mas logo voltaria aquele estado de amargura, de ter o coração fechado e um gosto de desamor e de abandono. Meus olhos apenas contemplavam o infinito. Foi então que ouvi o espocar de fogos de artifício e caí na realidade. Sobre a mesa estava uma chave retorcida feita de lata. Olhei ao redor, as mesas vazias. Um casal de garçons me acenava sorridente. Pensei no velho das latas, apertei a chave com força e uma sensação de paz abriu em meu coração para nunca mais se fechar para o amor. Olhei novamente em volta. O relógio do trapiche marcava meia-noite. Era natal e as luzes piscavam como meus olhos cheios de marés lançantes.

30/05/24

"A tacacazeira de olhos ternos e largo sorriso" - Alcinéa Cavalcante - Cadeira nº25

Dona Mangabeira era uma negra de olhar límpido, sorriso largo e dentes tão brancos como os guardanapos de algodão que ela mesma fazia para cobrir as panelas. Foi uma das primeiras tacacazeiras da cidade. Era do bairro da Favela. Sua banca (naquele tempo não tinha os carrinhos de hoje) era montada na esquina da rua Leopoldo Machado com avenida Almirante Barroso. De longe se sentia o cheiro do tucupi. Esse cheiro dava água na boca atraindo tanta gente para sua banca. O camarão era vermelhinho e o jambu treme-treme. Aos domingos, a movimentação era bem maior. Era parada obrigatória de quem passava por ali para ir ao estádio Glicério Marques assistir aos clássicos da época. A todos – autoridade ou peão – Mangabeira atendia com alegria, contava histórias, fazia o tacacá do jeitinho que o freguês pedia. – Mais goma ou tucupi? Quantas colheres de pimenta? Quer mais jambu? E o freguês ia dizendo como queria. De muitos ela sabia o gosto e já nem perguntava. Contava que meu pai, o poeta e jornalista Alcy Araújo, era o único que tomava tacacá sem goma. Mangabeira tinha um carinho especial pelas crianças. Para elas servia o tacacá em cuia menor e nada de pimenta. Às vezes um moleque mais ousado pedia que ela colocasse um pinguinho. E ela, cheia de doçura, respondia: “Meu filho, criança não come pimenta”. E o moleque não insistia. O convencimento, tenho certeza, não era pelas palavras, mas pela doçura com que ela falava. Além de tacacazeira, Mangabeira era excelente lavadeira. Daquelas que botava a roupa “pra quarar” e engomava usando ferro a carvão. Era também benzedeira, tirava quebranto de criança, fazia banho de cheiro pra curar gripe, catapora e sarampo e chás e garrafadas pra todos os tipos de males. Mangabeira era uma imagem forte na paisagem do meu bairro e é uma das belas recordações da minha infância.

12/07/24

"Ilhado" - Tiago Quingosta - Cadeira nº6

Calas os japiins e os jurutis, espalhas as andorinhas, depenas os papagaios, sangras as samaúmas, secas os tajás, apodreces as mangas e jambos, matas açaizeiros. Mudas o curso d´água, trocas os hemisférios, esfrias os dias, expulsas o sol mais cedo. Furas as caixas, rasgas as saias, tornas sórdidas as açucenas, afugentas os botos, tiras o brilho das piabas, afundas batelões. E continuo aqui, deitado sobre a palha, subjugado fazendo amor, enquanto o incêndio destrói toda a taba.

07/11/24

Histórias e Estórias Jadson Porto – Cadeira nº 17 Minha história Entrecortada por histórias E estórias Enquanto resgato minhas memórias Revejo algumas trajetórias. Aquelas esquecidas ou guardadas Deixei-as quietas, acomodadas Por alguma razão dada Foram vividas e passadas. Enquanto não termina esta história A história vai se reproduzindo Em outras novas trajetórias E vou seguindo. E as estórias? Ah! Estas são minha inspiração Enquanto eu tiver imaginação Meu mundo encantado Estará em construção.

11/11/24

Em um sublime castelo Morava um senhor feudal. Vivia muito feliz, Ou na vida se deu mal? Em suas terras reinava Alegria divinal (Seria o Paraíso ou o Juízo Final?) A terra, bem fértil era, (poderoso matagal?) Que ousadia teria? Um passa, um salto mortal? Seus filhos eram as flores Tão belas de seu quintal. (Será que seu cachorrinho Era o senhor Lobo Mau?) Passou-lhe, então, a morte... Trancou-se num pantanal. Será que valeu a pena Viver o Senhor Feudal?

12/11/24

"Inspiração ao Luar" - Ricardo Pontes  - Cadeira nº3

Inspiração ao Luar Quando acalentar o luar Saudades se vão e paixão se vai. Os lamentos trazem o aconchego de tantas carícias. Ao serenar dos olhares eternos, O silêncio traz a coincidência, Reflete a existência do eterno amor. No entanto somos os delírios de palavras que professam a madrugada. Sopram os ventos que consiste a mulher amada.

13/11/24

Amazônia – Natureza, Homem e Tempo O título dessa crônica é uma referência ao livro do autor: Leandro Tocantins, a obra é datada, de janeiro, do ano de 1960. É interessante na obra de Tocantins (1960), que o autor adota uma atitude realista com relação a região, fugindo do sensacionalismo para preferir a interpretação objetiva. Nas notas introdutórias do livro, Tocantins, explica, já nos anos, de 1960 que a Amazônia era um destino singular, pois oferecia elementos de que esse mesmo mundo se vem valendo para erigir condições de bem-estar e espiritual, sem que se lhe criassem idênticas condições existenciais. Todo o processo de formação e desenvolvimento estava vinculado a essa questão. No prefácio da obra, Arthur Cezar Ferreira Dias (1960, p. 22), destaca o seguinte: “No livro, “O rio Comanda a Vida”, Tocantins, deu-nos, uma interpretação de um conjunto de imposições das forças físicas da natureza amazônica, exuberante e enganosa, sobre o homem. O rio imenso não fora vencido pela sociedade que se formara à sua margem. Ao contrário, ele é que continuava a dominar, vitorioso sobrepondo-se às forças de que esse homem se dizia possuidor ou ao sabor de sua vontade”. No livro, “Amazônia – Natureza, Homem e Tempo”, o autor oferece-nos o balanço do esforço que esse mesmo homem vem efetuando, através de três séculos, na luta contra floresta, contra o clima, contra as águas, contra as doenças, contra a natureza, enfim, tentando triunfar e criar a civilização regional. Passa em revista a história social e a história econômica, os altos e baixos da vida vivida ali. Os êxitos e os desenganos. O que se sente, porém, mais intensamente à leitura atenta de suas páginas, tão cheias de vida, de sabor literário, é que a Amazônia não se libertou daquele destino a que nos referimos, prosseguindo no seu papel de região útil aos outros, ao bem estar de regiões distantes, que se civilizaram na base de muito do que ela lhes mandou e que elas souberam manejar com a inteligência pragmática, utilitária e imediatista”. Se levarmos em conta as palavras descritas nos dias atuais, são 64 anos após a publicação do livro, inevitavelmente vamos levar a crer que essa dimensão Amazônia – Natureza, Homem e Tempo, como sugere o título do livro passou a ter um turbilhão de questões que até o começo da década de 1960, ainda não estavam sendo absorvidas totalmente, principalmente pela força dos grandes capitais e de empresas estrangeiras para investir na região através dos grandes projetos. É importante no livro de Tocantins, pensar que o título proposto, inclui uma trilogia muito especial, não somente para Amazônia, mas para o mundo, pois o objeto maior de todos homens civilizados, é que a Natureza seja percebida com o cuidado devido, sem as agressões que temos visto nas últimas décadas. Quanto ao Homem, é evidente que temos que levar em conta que a globalização aproximou as fronteiras culturais, do conhecimento científico, todavia, não vem dando condições pertinentes para se compreender o que significa o equilíbrio dessa relação com a Natureza. E a terceira dimensão, o tempo, nos coloca não somente diante de apologias filosóficas, mas cada vez mais reais sobre o qual significado para todos nós, sobre o que é o tempo. Nesse sentido, que papel tem a região para erigir novas formas de convivência humana, e, como resultante, criar valores universais, não somente para ser medido somente por uma análise da Geografia econômica, da Estatística, o de mera exposição de ocorrências político-administrativas, e sim, com bastante ênfase, pela sondagem e interpretação de fatos de cultura. E quando se diz cultura, na condição moderna, onde se juntam os valores eruditos aos comuns, os populares, os cotidianos, originários da vida, significa o homem organizando-se no espaço, socialmente ecológico, a fim de realizar o aproveitamento da Natureza em favor da sua espécie (Tocantins, 1960, p.25). Esse trecho descrito por Tocantins, nos leva a crer que o Tempo, não é uma variável relativa, se a sucessão de fatos e acontecimentos não acontecerem de forma integrada e levando em conta o que significa para o lugar e para as pessoas, o chamado e desejado desenvolvimento. Números formam estatísticas, entretanto, não definem a formação de um lugar como condição essencial da vida. Portanto, interpretar o contexto amazônico, jamais poderemos dissociar de seu contexto sociológico e até ecológico. A preocupação pela Amazônia não é somente de quem mora e vive no lugar, mas de todos os habitantes do Planeta Terra. Nesse aspecto, o livro nos convida a perceber o espaço físico social, a discorrer sobre o esforço criador do homem, sobretudo numa região de caráter geográfico tão singular, como é a Amazônia, envolve certa ordem de ideias de acordo com Tocantins. Todos esses fatores concorrem, em maior ou menor escala, para a organização dos agrupamentos humanos no espaço, os quais, pelas suas necessidades elementares de vida extraem da natureza fontes de subsistência e de utilidade prática do meio social. Tais afirmações de Tocantins, nos mostram que a segunda metade do século XX na Amazônia, cresceram diversas cidades. A população em todas as capitais se elevou. A abordagem sobre o contexto amazônico ocorreu sempre em uma esfera distanciada de uma análise conceitual. A abordagem tem sido política, fragmentada, isolada e politiqueira. Durante décadas os estados e municípios tem enfrentado adversidades absurdas com relação aos grandes projetos minerais, agroflorestais, energéticos e tantos outros, a União praticamente se impôs como o agente principal. A imposição dos grandes projetos provocou mudanças e transformações extremas no cenário de uma Amazônia urbana cada vez mais distante de políticas urbanas integradas e integradoras. O livro “Amazônia – Natureza, Homem e Tempo”, foi editado há mais de seis décadas, todavia, traz uma reflexão contemporânea importante para todos nós, que vivemos na região, mas, não damos conta da imensa responsabilidade que cabe ao conjunto da sociedade. Mesmo porque, como diz Tocantins, o homem também reage ao meio. Reagiu sem deixar de subordinar-se à mata e inter-relacionar-se com a floresta. Mesmo porque o ser superior sofre passivamente até certo ponto as influências do meio, havendo um limite para que se produza a reações contra as condições físicas, e estas acabam por curvar-se a sua vontade.

16/11/24

PASSEIOS PELA MINHA CIDADE Nossa cidade crescera. A cada ano, nas férias, encontrava novas construções – algumas que demonstravam o elevado poder aquisitivo de muitas famílias de funcionários públicos, beneficiados pelas leis do nosso país, pelos sindicatos e políticos, que concediam privilégios aos burocratas instalados nos poderes, enquanto os demais funcionários poucos direitos usufruíam e tinham que trabalhar todos os dias, sem feriados, folgas, licenças e dispensas. Naquele ano, a montanha estava linda, brilhante sob o sol, cheia de cores. De longe, parecia um palácio dos deuses. Quando éramos crianças, acreditávamos nas lendas contadas pelos anciãos. Reunidos à noite, ouvíamos com atenção e temor o relato daqueles senhores de cabeça branca, alguns de barbas tão compridas que chegavam ao chão. Pareciam histórias do começo do mundo, quando animais fabulosos caminhavam naqueles vales, peixes imensos eram fisgados em memoráveis pescarias - orgulho dos valorosos pescadores de antanho. Até um dragão pândego aparecia durante o carnaval. Sobrevoava a cidade, pousava na torre da igreja, na caixa-d’água e mergulhava no rio para refrescar-se do calor – ele mesmo, um contumaz vomitador de labaredas, enormes tochas parecidas com fogos de artifício. Nós, as crianças, aguardávamos com ansiedade a chegada daquela criatura. Nunca ouvi dizer que acontecera qualquer incidente com o dragão. A cidade inteira parecia protegê-lo, pois os habitantes combinaram entre si jamais divulgar sua presença para os meios de comunicações ou aos cientistas. Meus avós contavam para nós sobre essas aparições, cuja origem perdia-se no tempo, pois desde a época da escravidão os ancestrais já se referiam ao monstro. Sua linhagem ou o local onde habitava durante a maior parte do ano era um enigma para todos – inclusive os supersticiosos, que acreditavam ser aquele ser de origem maléfica. Quem sabe ele se abrigasse nas cavernas existentes na montanha, pois só aparecia na cidade na época do carnaval. Um dia o bicho mergulhou nas águas do rio e quiçá tenha se afogado – embora alguns pescadores e mergulhadores o procurassem por vários dias sem encontrar nenhum vestígio. Mas depararam com os destroços de uma embarcação antiguíssima, reconhecida pelo historiador Washington Maciel Cantanhêde como um dos galeões espanhóis da época colonial. Logo o eminente estudioso, muito zeloso de suas responsabilidades para com a nossa história, encaminhou ofício às autoridades, que vieram examinar a descoberta. Mergulhadores e técnicos vasculharam grande parte do rio e recolheram todo o material para ser analisado por técnicos e arqueólogos, o que de certa forma deu por um tempo relevância à nossa aldeia, que foi citada em publicações, para orgulho dos poucos intelectuais que habitavam entre nós. E até no tempo presente se discute o que teria acontecido com o dragão. Para Chico Barbeiro, naquela época ainda um jovem aprendiz da arte de cortar cabelo e aparar bigodes, o bicho fora devorado pela mãe-d’água. O ferreiro Zé Paniz, também jovem e engendrando suas famosas espingardas, afirmava: o dragão simplesmente tinha caído num redemoinho formado dentro dos poços sem fundo existentes em alguns lugares do rio. Era essa a explicação para os afogados cujos corpos jamais apareciam. Velha Amância, ex-escrava, amiga da preta velha Calixta, acreditava que Deus nos livrara de um mal através das águas. Para ela, mais dia, menos dia, aquela criatura poderia destruir a cidade. Os sonhos e premonições lhe diziam isso claramente. Para Zequinha Barros, escrivão e famoso clínico leigo, cujas receitas curaram as enfermidades de várias gerações, aquele dragão não era nada mais, nada menos do que uma máquina inventada por algum gênio maluco e anônimo, que vinha repassando os segredos para os seus descendentes. Joca Travessão, agricultor e encarregado pela limpeza do simulacro de aeroporto que naquele tempo existia nos arredores da cidade, acreditava que o bicho vinha da lua, espantado com os “foguetes” de russos e americanos que não paravam de chegar perturbando a solidão de São Jorge. O sapateiro Herculano Beiçola chegou a insinuar que o dragão era o espírito de algum morador antigo que não conseguia se libertar da vida terrena. Eu caminhava pela rua quando me deparei com uma escola, grande e bonita, pintada de verde, cheia de janelas. Muita gente entrava e saía como se houvesse uma festa. Eu entrei e, como acontecia a cada ano, menos pessoas conhecidas encontrava. Ouvi então uma música tranquila e harmoniosa oriunda de uma das salas, distante da festa principal. Fui verificar e me deparei com dois senhores de idade, um dos quais me parecia familiar, pois me lembrei de uma matéria publicada numa revista de enorme circulação, que eu lera na semana anterior. Aquele era um dos maiores compositores vivos do nosso país. Estava com um violino e o seu companheiro era o velho maestro Doquinha Franco, patriarca de uma família de músicos da cidade. Ninguém por perto. Aproximei-me, cumprimentei os artistas e fiquei feliz por alguém tão importante estar entre nós. -O senhor conhece alguém aqui em nossa cidade? - Claro. Venho aqui descansar e conversar com o meu amigo Doquinha Franco. - Eu li a matéria sobre o senhor. E confesso: jamais poderia imaginar encontrá-lo aqui. Certamente as autoridades sabem da sua presença... - Não, não sabem – nem eu quero que saibam. Também não quero saber de jornalistas. Você é jornalista ou repórter? - Eu? Não, claro que não. Trabalho num banco. Mas eu gostaria de tirar uma fotografia com o senhor, caso permita, é claro. - Mas um jovem querer tirar fotografia com um velho feio e que já anda caducando? -Ora, o senhor é um grande artista. Nosso maior artista. -E você, entende de música? - Não tanto como o senhor, embora na minha família haja alguns músicos; mas seria uma honra guardar uma lembrança sua. Afinal, podemos fotografar? -Cadê a máquina? -Vou arranjar. Por favor, não saiam daqui. Saí correndo procurando algum fotógrafo – ou alguém que tivesse uma máquina. Busquei em todas as salas do primeiro e do segundo andar. Percorri corredores, salões, a parte administrativa, informei ao diretor da presença do compositor e ele sequer ergueu a vista; vistoriei todas as dependências, parava homens e mulheres que portavam alguma bolsa ou sacola e até busquei nas proximidades da escola sem encontrar nenhuma máquina, nenhum fotógrafo. Comecei a me dirigir às pessoas conhecidas, implorar que me emprestassem o equipamento, pois tinha que fotografar aquela personalidade. Ninguém parecia se interessar pela celebridade, um homem que percorria países e mais países, dava entrevistas nas emissora de televisão, vivia sendo paparicado por milionários, políticos, socialites. Algumas pessoas sequer ouviram falar dele, o que me deixava exasperado. Como? Será que nesta cidade não se assistem aos programas de TV, não se leem as revistas – mesmo as de fofoca? Uns vinte minutos depois, retornei, triste, ao local onde os dois artistas estavam: sem a máquina. - Me desculpe, senhor, parece brincadeira, mas não encontrei uma única máquina nesta escola. Nem fotógrafo. - Melhor assim. Pelo menos não vais ter que ficar olhando para dois velhos feios e sem graça. Fiquei ali, calado, apenas ouvindo a melodia dos dois músicos e imaginando tão pobre estava a nossa cidade que não se interessava pelos grandes artistas... A poucos metros daquela escola, num prédio medieval, cuja manutenção não era de incumbência da administração local, havia a biblioteca, cujo ingresso era proibido para todas as pessoas, principalmente a nós, os naturais. Poucos, pouquíssimos privilegiados tinham acesso ao interior do edifício, mas não podiam adentrar ao recinto onde os copistas e polígrafos trabalhavam ininterruptamente, segundo as notícias, há séculos, decifrando e restaurando manuscritos, tábuas de argila, rolos de pergaminhos, incunábulos, papiros e outras formas arcaicas de escrita. Fotografias clandestinas, obtidas por espiões, embora de péssima qualidade, mostravam aqueles seres esmaecidos - que pareciam pinturas esmaecidas - debruçados sobre o trabalho, à luz de velas e lampiões. Alguns tão barbudos e cabeludos que quase não se podiam vislumbrar seus rostos. Estudiosos do mundo inteiro visitavam aquele local, mas retornavam enfurecidos e decepcionados. A Irmandade Secreta do Conhecimento Universal (ISCU), entidade mantenedora daquela instituição, era protegida por leis internacionais e vinculada à Biblioteca Secreta do Vaticano. Por isso, os pesquisadores nada podiam fazer para se inteirar das atividades ali desenvolvidas, tomar conhecimento e divulgar nas publicações especializadas o resultado de tantos e tantos anos de trabalho. Segundo informações não oficiais, só depois que se traduzisse e decifrasse todo o material, o mundo poderia conhecer os segredos depositados nas peças antigas onde os nossos antepassados registravam o conhecimento humano que dispunham. Comentava-se (e até alguns setores da imprensa vez por outra noticiavam assim) que haveria uma reviravolta completa na história do homem sobre a terra quando fossem divulgados os conteúdos dos manuscritos. Setores da Igreja e dos governos que dominavam o mundo não teriam interesse na difusão do conteúdo daqueles documentos, alguns oriundos das primeiras civilizações. Soubemos, por meio de boatos, que os especialistas que trabalharam nos manuscritos do Mar Morto estiveram secretamente algumas vezes em nossa cidade e foram admitidos nos recintos proibidos para trocar informações com os polígrafos. Nada disso foi publicado sequer nos pasquins vagabundos e nos panfletos apócrifos que, vez por outra circulavam por aqui avacalhando religiosos, desonrando famílias, injuriando pessoas de bem ou até mesmo criticando os políticos sem-vergonha e demais autoridades. Certo panfleto vulgar divulgou a existência de um manuscrito muito antigo afirmando que os alenígenas, oriundos do infinito, milhares de anos atrás, designados para povoar a terra, fizeram experiências genéticas nos primatas e os transformaram em humanos. Um dia eles retornarão para averiguar em que estágio nos encontramos. Conforme as informações desse manuscrito, caso não tenhamos evoluído segundo a expectativa deles, poderemos ser exterminados ou farão novas experiências. Ninguém sabia como viviam, de que se alimentavam, como eram os nascimentos (se é que havia alguma mulher naquelas instalações), as mortes – enfim, como funcionavam as coisas naquela biblioteca. Não se tem notícia de nenhum óbito, nenhuma saída de cadáver. Especulava-se na cidade que os defuntos eram cremados ou mantidos dentro de urnas que conservavam os corpos por milhares de anos. Outros já diziam que os escribas eram imortais e se disfarçavam para sair às ruas ou mesmo tinham fórmulas para ficar invisíveis – crença que se consolidava por causa de um fenômeno, que acontecia a cada década, originando a aparição de uma coleção de arco-íris. As listras coloridas surgiam na extensão de todo o céu sobre a cidade, mas convergiam para o prédio da biblioteca, iluminando e fustigando, com uma explosão de cores, o edifício. Esse fenômeno se prolongava por até uma semana, enchendo de alegria as crianças que adoravam o espetáculo multicolorido. Pássaros de todas as partes do mundo vinham sobrevoar a cidade, cantando e louvando a aparição das luzes celestiais. Por isso, os anciãos e os sábios que habitavam entre nós diziam que aquela energia cósmica tornava os monges e polígrafos invisíveis e eternos. Mas ninguém tinha certeza de nada. Não longe dali, em local guarnecido por monges e forças especiais da segurança espiritual, estava trancafiado, em eterna solidão, um dos demônios que escapara dos abismos sem fim e vagava pelo universo, meio desmemoriado e com visíveis sintomas de demência e senilidade. O padre Sergio Ielmeti, italiano radicado em nossa pátria e um dos exorcistas mais conhecidos, descobrira-o por acaso ao ser convidado para dar extrema-unção a um enfermo que morava na periferia. Dias e dias de agonia, a família desesperada, o homem falando línguas desconhecidas, com um brilho intenso nos olhos e um odor de enxofre e amoníaco que afastava de perto de si quase todos que se aproximavam. Depois de quase um mês, o padre reuniu seus aparatos: um grosso compêndio com fórmulas e orações, água benta, crucifixos, unguentos e, com o seu vozeirão cheio de sotaque, conseguiu extirpar do corpo daquele infeliz uma névoa fosca que se metamorfoseou em uma criatura debiloide, com dois chifres raquíticos e tortos, uma cauda fajuta e de pelos ralos; fedorento e combalido, balbuciava frases ignotas. Assim era aquele demônio, que estava no limite da sua decadência, um ser de milhares e milhares de anos, que privara da convivência de entidades celestiais e infernais, e que, por uma fatalidade, viera ocupar um corpo enfermo numa localidade remota da terra. O padre, preocupado com a segurança do mundo, conduziu a obsoleta entidade para uma prisão construída de cristais raros e energizados por raios siderais, onde ele passou a viver, servindo de atração, principalmente para a molecada, os desocupados e os bêbados errantes. Caravanas de vários países vinham observá-lo. Eu, quando criança, tinha pena daquela criatura débil e pilosa, com dois testículos murchos e um membro avantajado e mole, do qual escorria uma substância fétida e nauseabunda. Alimentava-se de gases e lama dos pântanos e passava meses e meses numa espécie de letargia, fumegando, misturando-se com uma bruma espessa, flutuando pelo ar e às vezes quase desaparecendo como as sombras mórbidas de um pesadelo. A minha cidade era uma das mais antigas do país. Mesmo assim, o progresso parecia não chegar até nós. Os monumentos históricos da antiguidade foram aos poucos sendo descaracterizados, demolidos, transformados em prédios inúteis. Os arquivos que continham informações sobre a nossa história mais recente foram roubados ou incinerados. Os governantes, desde a época colonial, demonstravam não amar o povo. Poucas realizações dignas de nota podiam ser encontradas. Quando assumia um novo dirigente, desmanchava o que o outro fizera, trocava o nome dos órgãos públicos, dos cargos, perseguia os que faziam parte do governo anterior e colocava toda a culpa pelos erros e falhas nos antecessores. Todos eles tinham o péssimo costume de nomear parentes e criar projetos mirabolantes, inconsistentes, cujo destino, como já se mencionou, era o esquecimento, a anulação, pois nenhum chefe assumia o que o outro deixara. Sabendo o que os esperava, pareciam zombar da população enquanto tinham algum tipo de poder e antes de perder a cabeça. Na Floresta dos Acéfalos, local proibido para crianças e mulheres, onde as sombras dominavam o tempo inteiro, os ex-dirigentes penavam como animais doentes e apáticos. Depois que encerravam seus mandatos, tinham a cabeça decepada numa guilhotina de prata, em ritual que durava um dia inteiro, reunindo a elite política, empresarial, religiosa e os que se intitulavam produtores culturais e os pseudos artistas – estes sempre atrás das verbas públicas para contribuir com a cultura. Após a cerimônia, os sacerdotes conduziam a cabeça, que era mumificada, e a depositavam numa ala do cemitério, em urna de vidro especial, onde se lia uma sintética biografia listando sua genealogia e feitos. Depois, os corpos recebiam uma substância secreta que evitava a morte das células e eram isolados naquela nubilosa mata, silenciosa e triste, cujas árvores não podiam ser derrubadas. Às vezes, algum desses acéfalos conseguia escapar daquele purgatório e perambulava pelas ruas da cidade, mas era logo escorraçado, apedrejado e recebia excrementos pelo corpo, atirados pelos moradores que se divertiam com os renegados. Como não podia morrer, retornava à necrópole florestal, sem emitir um gemido, um lamento, cumprindo o seu penoso destino e perpetuando uma secular tradição da nossa cidade, que muitos já tentaram abolir e não puderam. Pelo que contam os cronistas, três plebiscitos foram instituídos para deliberar e a maioria sempre vota a favor da continuidade do bárbaro costume, que tem indignado muitos organismos de direitos humanos no mundo inteiro. Na cidade subterrânea, cuja entrada era guardada por espíritos das eras antigas, ficávamos ansiosos para saber o que de tão misterioso e inacessível ao povo havia nas ruínas. Um manuscrito fora encontrado, na Ásia, no século XVII, descrevendo a localização dessa civilização sob a nossa cidade. Desde então, por gerações sucessivas, o Poder Central vem mantendo severa vigilância sobre a única entrada existente. Além dos espíritos, homens do serviço secreto se revezavam diuturnamente, controlando a entrada e saída dos arqueólogos, cientistas e pesquisadores. Como essa gente escreve em códigos ininteligíveis e comentava-se que havia censura nas informações, nada sabíamos sobre como vivia aquele povo, cuja cidade fora soterrada por algum cataclismo. Dizem os mais falantes - essa gente cheia de imaginação e fantasia, que passava o dia inteiro perambulando pelas ruas, que os antigos eram sábios, conspícuos, tinham poucos pelos (até as mulheres usavam a cabeça raspada), adoravam os grilos como se fossem deuses e mumificavam os seus mortos, que eram conservados em sarcófagos de vidro. Dizem, e eu tenho que acreditar, que eles também dormiam durante anos e, por meio dos sonhos, recebiam ensinamentos e uma energia cósmica potente, capaz de mantê-los com pouquíssima alimentação. Sinceramente, não creio que um povo tão poderoso desapareceu, mas talvez ainda continue habitando em algum lugar inacessível a nós, bisbilhoteiros e incrédulos. Nós, sim, absorvidos em sonhos duradouros, mas improfícuos, apenas vivendo, observando e tentando compreender os intrincados labirintos da nossa vida.

16/11/24

Tempo José Queiroz Pastana Passam os minutos Sinto o anseio No passar das horas Fica o desespero. Passam as horas Sinto o desespero No passar dos dias Fica a esperança. Passam os dias Sinto a esperança No passar do tempo Fica a velhice. Passa o tempo Sinto a velhice No passar da morte Fica a saudade. Passa a saudade Sinto a alegria No passar da desilusão Fica a poesia.

18/11/24

Entrei. Um vento forte varria o chāo da estação, levantando pedaços de papel e folhas. Uma senhora aflita lidava com três filhos, tentando direcioná-los à locomotiva. O maquinista já apitava, fazendo com que rasgos de fumaça se misturassem ao vento. Desci. Corri até eles. Peguei um dos guris no colo e outro pela mão. As grandes rodas de ferro já se movimentavam quando entramos. Coloquei o rapazote no chão e enxuguei o suor do rosto. O serviço de escritório havia me enferrujado até a medula. O corpo todo arfava ao menor exercício. - Brigado. – agradeceu a senhora, reunindo a ninhada ao seu redor. - Não há de quê. - respondi, ofegante. Seguimos em frente e talvez por coincidência, havia somente quatro lugares vagos. Sentamos Os cinco juntos, a senhora de frente para mim. Pude, então, observá-la. Devia ter uns 25 anos, embora aparentasse mais. Varizes serpenteavam por toda sua perna. O vestido de chita, estampado de flores, a custo segurava os seios moles. Tinha mão grossas, de gente que lida com a terra. O rosto era marcado pela vida. Rugas precoces avolumavam-se sobre a pele queimada. O cabelo, descuidado, deslizava simplesmente em direção aos ombros. Os olhos, tinha-os tristes, cabisbaixos, injetados de sangue. Havia de ter sido bela um dia. -Seu marido não vem? - perguntei eu, depois de algum tempo. Ela abaixou o rosto. Passou algum tempo assim. Depois observou os meninos. Estavam todos vestidos iguais, com calças que deixavam entrever o joelho e camisas de algodão. Ela vistoriou o que estava no seu colo. Arrependi-me da pergunta e olhei pela janela, desconcertado. - Não vem, não senhor. - exclamou ela, de repente Olhei-a. Ela abaixou os olhos - Está esperando você? - arrisquei - Não tá mais não. O pobre ficou lá na cidade. Interessou-me. Fiz-lhe novas perguntas que ela respondia com monossílabos, até que desatou a chorar. Consolei-a. Segurei sua mão. Pedi que demonstrasse força diante dos filhos, ao que ela se recompôs. Encostou na cadeira enxugou as lágrimas e pôs-se a falar. Soluçava e às vezes até vinha-lhe à garganta novo ataque de choro, que ela segurava heroicamente. Contou-me que havia casado nova, com um rapaz das redondezas, lavrador como ela. Naquela época ainda não existia o trem e até a cidade eram léguas no lombo do cavalo, se o viajante fosse rico, ou a pé, se fosse pobre. Contou-me das andanças que precisou fazer no dia do casório. Falou do caminho estreito, sujo de esterco, que teimava em grudar na ponta do seu vestido branco. Narrou o episódio de uma cobra que aparecera no meio do mato e como seu futuro esposo a matou querendo impressioná-la Casaram na cidade e voltaram à noite para a roça No começo viveram com sua mãe, depois construíram uma choça de pau-a-pique. Teriam sido felizes, não fosse uma promessa que o marido lhe havia feito na lua de mel: ficaria rico! Havia de ver! Ficaria rico de comprar fazendas até onde a vista pudesse alcançar. Eles beberiam café em xícaras, como haviam visto na casa do coronel, e seus filhos estudariam na capital. Seriam doutores - Vão sê dotô, Maria, de falar difícil de ninguém entender. Tiveram um filho e depois outro e outro. Ele não se esquecia da promessa Haviam de ser ricos. Foi quando surgiu o trem de ferro. Passava a umas tantas terras da choupana, mas João - esse era seu nome- ia todo dia religiosamente, ver o trem passar. Regalava-se. Batia palmas, ria, gritava para os passageiros. Seis olhos brilhavam -É isso, mulher! O trem! É o jeito da gente ficar rico, não vê? - Mas como, João - Como? Como? Mas então, com aquela ferraiada toda.. é coisa de rico, coisa de rico, mulher! O homem que dirige aquele trem deve de ser rico até não mais podé contá.. - E como é que você vai ganhá dinheiro com isso, João? - Mas como? Como?! Eu entro no trem e converso com o homem, sô. Proponho sociedade... eu trabalho para ele e recebo uma parte das passage... - Mas e se ele não aceitá? - Sempre vale a viage, num vale? -E como é que ocê vaì entrar no trem, homem de Deus? - Ah, isso é cá comigo. João mudou. Não cuidava da roça. Deixava a vaca pastando ao léu, voltava tarde para casa... Ficava o tempo todo no morro, observando os trilhos, esperando a hora em que trem passava. Vieram avisá-la. Estava morto. No fim da tarde, quando o trem passava, João pulara sobre ele como se fosse um cavalo. Até conseguira se agarrar, mas desiquilibrara, perdera o pé... e caira. Seu corpo rolou pelo morro e a cabeça deslizou para debaixo do trem. A mulher agora vinha do enterro. O padre insistira para que fossem depositar o corpo no cemitério da cidade. Algumas pessoas juntaram seus cobres, a fim de pagar-lhe a passagem, a ela, aos órfãos e ao marido morto. No enterro compareceram alguns gatos pingados, mais por curiosidade que por piedade. Os amigos estavam todos na roça. Nisso o trem parou. -Brigado, seu moço, brigado. - disse ela, pegando os filhos. Desceram. Observei-os durante algum tempo, mas o trem pegou velocidade e eles desapareceram no meio do rastro de fumaça.

19/11/24

Ao passar em um concurso para Juiz de Direito, nos anos oitenta, no Estado do Pará, deixei a Promotoria de Justiça e tomei posse para exercer minhas funções na Comarca de Chaves, no arquipélago do Marajó. Em 1990, na eleição para Presidente, convocaram-me para uma reunião no TRE. Queriam eles que, em 48 horas, fosse publicado o resultado oficial. Eu então expliquei que o Município de Chaves tem 26 secções e, somente duas na sede, o resto é espalhado. Há uma no Mocoons (outrora tribo indígena) que, após a eleição, coloca-se a urna num cavalo e viaja-se, por 6 horas, até a fazenda Laranjeira. No dia seguinte, um monomotor desce, pega a urna e leva até a sede. Essa é fácil de resolver. Há três seções que ficam próximo ao Amapá, Viçosa, Valério e Arrozal, que as urnas somente chegam em Chaves no segundo dia, à tarde, pois, à noite não se viaja, e, nessa época, era dia de lua cheia, e pororoca brincava de pira. (expressão cabocla relatando a intensidade do fenômeno). Continuei relatando que não dava para levantar voo em monomotor depois das 16h, pois poderíamos pegar chuva e chegar no início da noite em Belém, e então sugeri que colocassem uma embarcação à minha disposição. Após o encerramento, eu iria para Macapá e pegaria o voo de 1h da madrugada, mas não concordaram com ideia. De repente, um funcionário do TSE, que ouvia aquela propaganda dos Correios, que levava correspondência a todos os lugares falou: “Então, manda pelo SEDEX”. Eu virei e falei: “Só se for para chegar daqui a seis meses” – que era o tempo que os Correios levavam, para entregar uma correspondência, devido a completa ausência de transporte regular. Voltei para Chaves sem uma solução. Chegando, chamei o Edmílson, um caboclo que tinha um barquinho (um “puc-puc”), e orientei que transportasse as urnas de Viçosa, Valério e Arrozal até Chaves. Terminou a eleição, veio o primeiro dia, segundo dia e nada de aparecer o Edmílson. Havíamos apurado o restante, até mesmo a de Prainha de Fora, outra urna distante que vinha de canoa a vela, e o Edmílson, nem sinal. O Brasil inteiro já havia encerrado a apuração. No terceiro dia, ele apareceu. Chegou com as três presidentes de mesa. Apuramos os votos, peguei o monomotor e fui para Belém. Qual foi a minha surpresa, quando todas as televisões do Brasil, em seus jornais e nos momentos que cobriam as eleições, anunciavam: “Onça atrasa a eleição no Brasil”, “Onça come o cavalo que transportava as urnas”, “No Pará, uma onça comeu as urnas”, e assim sucessivamente. Os jornais de grande circulação nacional não deixavam por menos. Minha irmã Conceição, que morava no Rio de Janeiro, ao ler o Globo, falou para o Mário, meu cunhado: “Este lugar é onde o Beto trabalha, é em Chaves” (Beto é meu apelido de criança). A Marília Gabriela anunciou que uma onça causou problema e que o TRE do Pará mandou um avião até o local, para transportar as urnas. Enfim, virou manchete nacional. Sem contar a gozação. Certa vez, estive em Brasília, e um cidadão comentou comigo sem saber que eu era o Juiz de Chaves. Eu vim da Europa, e europeus gostam de menosprezar o Brasil. Dizem por lá, que uma onça atrasou a eleição no Brasil. Enfim, por onde andava, quando sabiam que eu era o Juiz de Chaves, pediam para contar a história. Até a Doutora Lídia, Presidente do TRE, gozou de mim, um dia. “Carne de onça é bom?” Eu pedi um avião de cinco lugares, para voltar no segundo turno, ou dois de três, para ajudar a transportar as pessoas que nos ajudavam, e ela brincando falou: “Um deles é para transportar a onça?” Vamos à verdadeira história da onça. O Edmílson, proprietário do puc-puc, tinha que passar pelas três ilhas: Viçosa, Arrozal e Valério. Passou em Viçosa, e depois, ao chegar em Arrozal, soube que uma onça havia comido umas reses suas (que já eram poucas, pois ele era um pequeno criador). Deixou as três presidentes de seção com as urnas, na Ilha do Valério, e foi caçar a onça. Viu o rastro, mas não matou o animal. Voltou para o barco. Acontece que, ao ir atrás do animal, perdeu a maré do dia, e, à noite, não dava para viajar, devido ao fenômeno da pororoca – que espalhava paus e árvores no rio. Só pôde viajar no dia seguinte, ou seja, ao perder a maré, perdeu um dia, chegando ao terceiro dia, em Chaves. Quando eu falei isso para os amigos, disseram que eu deveria ir aos programas de televisão e contar os fatos. Eu retruquei: “Se toda a imprensa nacional está contando de um jeito, como é que vão acreditar num Juiz de interior?” No intervalo do primeiro para o segundo turno, aconteceram dois fatos em Chaves: primeiro, a terra tremeu durante cinco segundos; depois, em Ubussutuba, que fica na Ilha da Caviana, três dias antes da eleição, um jacaré mordeu a perna de um mesário que transportava urnas. Desta vez eu chamei todos e disse que ficassem calados: “Já deu toda aquela confusão da onça... Se vocês falarem, vão dizer que o jacaré comeu as urnas de Ubussutuba...”

20/11/24

Quando criança eu era encantada com o ritual ancestral que parecia ladear vovó Emídia Lina do Espírito Santo na hora de suas cachimbadas. Era tanta gente junto dela, que mais parecia rodas e rodas superpostas de vários povos negros, cada um com o seu cada qual e todas as pessoas giravam juntas naquela roda ancestral. Eles eram muitos e o eram múltiplas. A mim parecia que eu já havia visto aquelas pessoas-irmãs porque eu via-me e sentia-me tão dentro; tão parte; tão herdeira daquela miragem – ou seria visagem, já que aquela gente toda parecia se mostrar e ao mesmo tempo eles não podiam ser vistos pelos meus irmãos que corriam e brincavam no quintal. Vovó Emídia – que era a mãe de minha mãe Maria da Conceição Lino Videira (minha Concita) – vez por outra esticava o olhar como se ela soubesse que eu estava sempre atenta e curiosa ao que ela fazia nos rituais sagrados, que eram assentados e depois ofertados para reverenciar a memória de nossos Antepassados. E eu estava mesmo. Vai ver porque eu mesma, sem compreender a missão que me foi conferida pela Ancestralidade no momento que a vida sorriu para mim, de certa maneira eu já soubesse que aquelas horas que vovó Emídia conversava comigo em pensamento quando eu ainda estava na barriga da mamãe era uma espécie de ritual de fecundação e posterior nascimento. Depois que eu estava no tempo de nascer e finalmente nasci, os rituais da Vovó que me preparava para substituí-la na ritualística consagrada aos nossos Antepassados continuou. Ainda continua. Recordo-me que Vovó tinha um aparato de elementos sacralizados que ela utilizava em todos os rituais que faziam parte do nosso fazer diário. Tinha reza ao acordar. Tinha folha sagrada para beber e também tomar banho. Tinha folha sagrada para benzer o corpo contra quebranto e mau-olhado. Tinha o modo de colheita, maceração e do cruzamento no sol de meio-dia dos unguentos e banhos para que a Luz Divina o pudessem redobrar a força e o poder curativo. Eu tinha tantos aprendizados importantes a saber, que Vovó, muito sábia e excelente educadora que era escolheu preparar-me para a minha missão mantendo o encantamento das brincadeiras, da molequice e da sapequice que habitam o meu ser criança. Ah! tinha outro dengo que Vovó fazia na minha cabeça que eu adorava. Primeiro, Ela me aconchegou em seu colo macio, depois ajeitou-me cuidadosamente entre suas pernas volumosas graciosamente forradas por uma trouxa de tecido cor de anil, formada por sua saia rodada e rendada e, antes de fazer uso do pente tipo garfo, apropriado para desembaraçar lindos cabelos crespos como o meu, Vovó usou, cantarolando e entoando cantigas saudosista de Marabaixo para trançar em minha cabeça-memória, com seus dedos-pentes, importantes saberes do nosso povo e o legado Ancestral da nossa gente. Curiosamente, em cada carreira de trança, Vovó dizia deixar registrado importantes momentos da histórica realeza africana de nossos Ancestrais. Em cada amarração em uma a uma das tranças ela deixava um segredo (escondido e bem guardado) para eu vir a conhecer quando eu fosse mais taludinha (com mais idade) e tivesse finalmente chegado o momento escolhido pela Espiritualidade. Vovó sabia prender a minha atenção – ah! como Ela sabia, pois as palavras dançavam ritmadas em sua boca faceira que recitava com aroma de hortelã as benditas lições que eu precisava aprender. Todos os ensinamentos eram ditos pausadamente, com paciência para que eu conseguisse compreendê-los. E o eram investidos em um dosado tom adequadamente sério e ao mesmo tempo divertido, lúdico, amoroso e afetivo como somente a Vovó sabia ser. Nesses momentos a nuvem de fumaça volumosa com aroma de erva-doce saía de seu cachimbo-amigo e confidente. Ah! recordo-me com saudades daquele cheiro de fumo perfumado com aroma hortelã, que eu sorvia de minha Vovó desde o ventre da mamãe Concita. Hummm hummm! Ainda hoje, recordar de tais momentos traz-me de volta vivências relevantes e elos inquebráveis de nossa árvore genealógica. Sinto saudades do cheiro de tabaco aromatizado com cheiro de ervas-santas que exalava do corpo agora Ancestral de minha saudosa Vovó Emídia.

21/11/24

Verdadeiros heróis: a saga dos universitários amapaenses (1960-1980): “Nossos brilhos em outras coroas...longe daqui” Segundo Silveira Bueno , o vocábulo herói significa homem extraordinário pelas suas proezas guerreiras, pelo seu valor. Nesse texto procuramos resgatar histórias e memórias da luta dos universitários amapaenses em outras cidades, principalmente Belém, entre os anos de 1960 a 1980. Logo após a criação do Território Federal do Amapá em 1943, inicia-se uma espécie de “revolução” no ensino e isso impulsionou alguns jovens estudantes amapaenses nos anos de 1960 a 1980 a buscarem o tão sonhado curso superior, que até então parecia muito distante, ora pela necessidade de deslocamento para outro estado, ora pela necessidade de aprovação no concorrido e “temido” vestibular. O Jornal Amapá , em 27/01/1968, trazia em destaque a seguinte manchete e o texto: Estudantes amapaenses logram aprovação no exame vestibular Expressiva conquista vem colher a juventude estudiosa amapaense no exame vestibular às diversas faculdades da Universidade Federal do Pará... Assim, suplantávamos a primeira adversidade, aprovação. A caminho de Belém, avião para poucos, barco e mais tarde navio para a maioria. Onde morar? Outro problema. Os que tinham parentes por lá, moradia garantida, pelo menos no primeiro ano (ou até ficarem aporrinhados com o estranho no ninho), os outros, faziam verdadeiros malabarismos. A opção imediata, “república”, cito algumas: Vila Macapá, República do Guamá, Casa do Estudante. Parecíamos dispersos na grande cidade de Belém, mas não. Pelo menos uma vez por mês nos encontrávamos no Banco da Amazônia ou Banco do Brasil, para recebermos a bolsa de estudo, era uma festa, uma retroalimentação, um incentivando o outro para continuar na luta em busca de um curso superior. Lembro que muitos de nós saiamos do banco direto para a feira livre do Mercado Ver-o-Peso, pelo menos nesse dia haveria fartura na alimentação. Com o apoio do padre Antônio Cocco que havia trabalhado muitos anos em Macapá e estava em Belém como pároco da Igreja Rosário da Campina, criamos na área da referida igreja, a Associação dos Universitários Amapaenses (AUAP), com uma bandeira de luta que nos unia por objetivos comuns. Nosso primeiro presidente foi Paulo José Ramos.   O poeta Fernando Canto, nos deixou uma canção, como ele afirmou, inspirada na trajetória dos universitários amapaenses longe de casa: Pequena Canção de Terra: É hora das horas É tempo de vento É hora de encontro É tempo de ir Já não brinquedo Já não há palavra E o sol brilha pouco, longe do Equador Aí dor! De saber agora Que me levo embora Me faço de brisa Mas tenho que ir. A história dos universitários amapaenses, em especial no período já mencionado, é marcada por desafios e conquistas. As dificuldades foram muitas para a grande maioria, que por falta de uma universidade no então Território Federal do Amapá tínhamos que nos deslocar para outro estado, porém, é importante que se ressalte, nós jamais “afrouxamos” diante das adversidades, pois sabíamos que na retaguarda, familiares e amigos torciam pelo nosso retorno, formados e como “verdadeiros heróis”. Que o legado desses pioneiros, alguns hoje como imortais na Academia Amapaense de Letras: Paulo Guerra, Nilson Montoril (em memória), Fernando Rodrigues, João Wilson, Cléo Farias, Edgar Rodrigues, Fernando Canto (em memória), continue ecoando como inspiração para outras gerações.

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